En Corps by Rui Eduardo Paes for their concert at Culturgest, Lisbon, Portugal (March 5, 2013)

É-NÃO É-É-NÃO-É-É

Com a edição, em 2012, de “En Corps”, o seu segundo título, a nova etiqueta francesa Dark Tree Records fez o pleno: o disco surgiu num incontável número de listas dos melhores do ano pelo menos por toda a Europa. E Eve Risser, a mentora do trio com Benjamin Duboc e Edward Perraud que o gravara, ganhou muito rapidamente um outro estatuto, equiparando-se a valores confirmados como Sophie Agnel e Kris Davis. Não surgia propriamente do nada, pois estava a fazer um bom trabalho com o projecto Donkey Monkey e inserida na Orchestre National de Jazz (ONJ), mas ninguém esperava este salto.

“Hanakana”, o seu duo com a percussionista Yuko Oshima que tem o nome de dois animais do imaginário humorístico da humanidade, revelou uma dotada praticante de música improvisada, e o magnífico “Around Robert Wyatt”, com a ONJ na presente fase directiva de Daniel Yvinec, mostrou uma intérprete de jazz capaz dos requintes indispensáveis à especial visão que o homenageado ex-Soft Machine tem da canção pop. Ora, “En Corps” é algo de completamente diferente dessas outras incursões, mesmo que possamos reconhecer alguns factores.

A música tocada tem um carácter estático e próximo do “drone” e recorre frequentemente à repetição de motivos fixos. Algo que contraria as convenções básicas da livre-improvisação, área em que o grupo se movimenta. Só que em “En Corps” o que parece não é e o que não é afinal pode até ser, num jogo (des)identificatório que nos troca permanentemente as voltas. O escritor e pensador anarquista Robert Anton Wilson defendeu a necessidade de retirar a palavra “é” do vocabulário, para libertar de quaisquer delimitações de parâmetros o “ser” dos homens e das coisas, mas Eve Risser faz melhor do que isso – atravessa os estados, cria uma música aquática ora em forma líquida, ora sólida, ora gasosa.

Com tal finalidade, adopta uma atitude de ingenuidade criativa: «Nunca tinha percebido que na improvisação as repetições eram proibitivas, e se tivesse não concordaria com esse tabu. A música é sempre repetitiva. Só há uma determinada quantidade de notas, timbres, ritmos e intensidades. A música é limitada já à partida. Para mim, utilizar padrões é como tudo o resto, uma técnica para dar a sensação de estar parado apesar de em actividade.»

Simular uma suspensão temporal está no cerne dos conceitos minimalistas e estes convidam a tocar menos, que é o que faz a corrente dita reducionista da improvisação. Mas se a música improvisada do triângulo Risser-Duboc-Perraud não é muito obviamente a da “old school”, também não partilha as lógicas de aproximação ao silêncio da “new school”. «Somos muito conversadores, pelo que uma boa solução para parecermos quietos é utilizar padrões recorrentes. É como se déssemos um passo em frente e um passo atrás para sempre», explica-se Eve. Ou seja, não sendo música improvisada “old school” e “new school”, o vai-e-vem em busca da imobilidade de “En Corps” realiza-se entre esses dois pólos. É-não é-é-não é-é.

E tem mais. O grande propósito do trio é criar uma música para o corpo, não para a mente. Uma música que se sinta na pele antes de o intelecto assimilar. Uma música que potencie situações dissociativas: o organismo adere antes que a cabeça racionalize. É nesta vertente que intervém o factor jazz. Duboc pode ser elíptico com o seu contrabaixo, como uma serpente à caça da própria cauda, e Perraud torna-se obsessivo no uso da bateria, reproduzindo células rítmicas atrás de células rítmicas. São figurativos numa tela abstracta e as figuras que utilizam, os papéis que encarnam, vêm do jazz. Descobrimos isso quando as nossas deduções nos dizem que “En Corps” não é jazz. Não é, mas é. «Não temos consciência do que realmente se passa», justifica-se Eve com toda a inocência. «Nós não analisamos, tocamos simplesmente.»

Para todos os efeitos que se queiram retirar, o formato instrumental é o do trio de piano jazz. Nada tem de familiar com as actuais reconversões desse paradigma histórico, mas houve uma clara opção logo na origem do grupo: «Decidimo-nos por essa direcção em vez da proporcionada pela “improv”. Não chamamos a isto jazz, mas o contrabaixista desempenha a parte do contrabaixo de jazz e não a do solista de improvisação, e o baterista actua como, bem, um “baterista”. Quanto ao piano, não sei. No princípio eu era um pouco solística, mas eles não acharam boa a ideia – nesse aspecto, não cumpro o papel do piano no trio de piano jazz. Pegámos numa sugestão do Edward – tocamos no limiar de sermos um trio de jazz, naquela zona em que quase, quase somos, mas não chegamos a ser.»

Um jazz não-jazz, portanto. «Pois, não venho do jazz e sim da música clássica e da música contemporânea. É essa a minha formação, apesar de também ter ouvido, estudado e praticado o jazz. Toquei jazz afro-cubano, metal-jazz e até o jazz do convencional trio de piano, mas não me considero uma pianista de jazz. A verdade é que não me preocupo com géneros e estilos. São apenas abstracções. Joëlle Léandre diz que tocar jazz é tocar a nossa própria música, nada mais do que isso. É certo que, quando improviso livremente, tendo a ser estática e quando toco jazz tenho um discurso mais narrativo. Mas tudo se mistura e vai sofrendo transformações. O “En Corps” anda aí pelo meio…» É físico até ao nível do transe. Por isso, e não obstante a sua complexidade, tem como característica ser profundamente comunicativo, «é uma música do corpo para o corpo, talvez até uma música de dança».

Acontece ainda que Eve Risser não se vê a si mesma, sequer, como uma pianista. Dedica-se igualmente à flauta e utiliza outras ferramentas sonoras, como a guitarra Barbie, que já é a sua imagem de marca, o theremin, os gira-discos e uma grande quantidade de brinquedos audíveis. Embora domine brilhantemente as técnicas do piano, o que com este faz muitas vezes não soa como um piano. Julgaríamos que faz tábua-rasa do passado deste instrumento não fosse esse passado saltar-nos à evidência numa ou noutra circunstância. Por exemplo, o piano preparado de John Cage.

Esta capacidade de criar música com os recursos que estiverem disponíveis despertou-lhe um especial sentido performativo e este desviou-a do rumo que, na juventude, anunciava um destino: a composição. «Permite-me aceitar os convites que me fazem para tocar mesmo quando os espaços que me recebem não dispõem de um piano. Os meus concertos são mais do que isso, são performances. Algo de semelhante ao teatro musical, em que os aspectos visuais implicados pelo facto de se tocar ao vivo são importantes. Por esse motivo é que trabalho muito com o que chamo “ilusões sonoras” no meu duo com Joris Rühl. Confundimos tanto os nossos sons que, às tantas, nem sabemos quem toca o quê. Os meus outros instrumentos são a resposta à questão “como sentir-me desconfortável, desafiada e com ideias frescas quando não tenho acesso a um piano”. E também me possibilitam introduzir algum humor, e é quando esses elementos de comicidade são raros que melhor resultam.»

Eve sente-se disputada por duas forças: por um lado tem a compulsão de reunir todas as suas influências musicais num mesmo híbrido, mas por outro não resiste à tentação de os separar, «como se tivesse várias profissões, umas vezes sendo uma carpinteira que faz mesas, outras uma pintora de retratos». «Talvez um dia consiga a diversidade na unidade. O meu desejo é que possa ser intérprete, compositora e improvisadora, explorando os diferentes balanços entre música escrita e música improvisada. Talvez num futuro próximo eu consiga definir uma direcção precisa: fazer o mesmo em contextos distintos. Estou sempre a dizer isso a mim própria, mas enfim… Verei onde é que a vida me leva», comenta.

A verdade é que uma boa parte do maravilhamento que Eve Risser, e sobretudo a sua associação com Duboc e Perraud, tem suscitado se deve à sua presente indefinição, às ambiguidades entre o que é e não é, sendo e não sendo em cada instante. Essa radicalidade, esse ir até às raízes para as virar ao contrário, é ainda mais efectiva do que as tentativas de supressão por Anton Wilson, nos seus textos, do verbo em causa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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